segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O novo Casmurro

* Fábio Waki

     Publicado pela primeira vez no ano 2000, Dois Irmãos continua a visita que o manauara Milton Hatoum faz a sua cidade natal e à cultura imigrante que aí fervilha, passeio iniciado com o romance de estreia Relato de Um Certo Oriente (1989). Descendente de libaneses, o autor erige em sua obra uma ambiência excepcional na estética literária brasileira, onde se fecundam, reciprocamente, as culturas árabe e indígena. O admirável desta conjugação são os microcosmos lexicais e culturais que salpicam o texto e sua trama, permitindo-lhes uma leitura de agradável novidade. De fato, é impossível lê-lo sem se deixar embalar pelas ondas caudalosas do Amazonas, pelos sabores exóticos da fauna e flora tropicais e pela verborragia cativante daquela população que é certamente uma das mais miscigenadas do Brasil. E é neste mergulho ao epicentro do improvável que o leitor encontrará uma nova versão para a fábula dos irmãos inimigos, relíquia bíblica, aqui reestruturada no romance de formação sobre uma família de imigrantes libaneses no início do século XX. Da parte do autor, prova ainda maior de maestria rara.
   Encenado no estreito da miséria amazonense, o texto se aproxima em muito da estética pós-colonialista de Marguerite Duras e de V.S. Naipaul. Como nestes escritores, o autor se posiciona como o elemento transeunte em uma natureza selvagem, desbravador de uma multicultura heteromorfa e ubíqua, que a todo o momento o incita a desvelá-la, qual um Odisseu de hábitos lodacentos; mas ele é também uma testemunha da implacável força imperialista que sobrepuja, à distância, este frágil universo. Claro, não estamos aqui diante da Europa e de suas colônias asiáticas, mas da contraparte brasileira, que na criação de Hatoum se desenvolve na virulência urbano-industrial sulista que parasita a subdesenvolvida capital do Amazonas (sinédoque do Norte como um todo). Contudo, não pense o leitor que o romance se acorrenta à sociologia histórica de uma Manaus do pós-guerra ou do pré-regime militar: também encontramos nas entrelinhas uma erudição típica de ficcionista, que nos confirma o gênio literato de sua pluma. Facundo, o autor faz questão de compartilhar conosco suas leituras dos textos sagrados (católicos e muçulmanos), da mitologia clássica, do nouveau roman, de García Márquez ou mesmo, e mais do que os outros, do bom e velho Machado de Assis.
    Com uma escrita humilde, Hatoum descortina o palco de suas memórias para que assistamos, no plano superior de sua criatividade, às fortunas e infortúnios desta família cuja sina está nos dislates de seu próprio sangue. E aqui, é impossível não se remeter às literaturas acima descritas: êmulos como Esaú e Jacó, Caim e Abel ou Pedro e Paulo, os gêmeos Yaqub e Omar são a doença crônica que lentamente arrasta a família para a morte, anunciada já na abertura do livro.
         “Meus filhos já fizeram as pazes?”, pergunta a mãe no último sopro de vida. Contudo, ninguém lhe responde.
      Por que história o leitor deve esperar após tal preâmbulo?


Microestética 
O ponto de maior destaque de Dois Irmãos é o narrador

    O sujeito que nos escreve, a primeira pessoa, não é Milton Hatoum, mas um homem que testemunhou a crise da família de um ponto de vista privilegiado e cuja existência é mesmo um sintoma de tal ruína. O que lemos é a prosificação de sua memória, espólios do passado desgraçado o qual anseia por partilhar com quem o leia. Assim, temos diante de nós um narrador onipresente, alguém que sabe e soube escolher os momentos mais relevantes de seus testemunhos para nos fisgar com sua história, um orador que conhece de antemão o início, meio e fim dos imbróglios familiares os quais, da nossa parte, ainda somos obrigados a deslindar. Mas, em nenhum momento podemos dizer que se trata de um narrador onisciente; ao contrário: o que o impele a rememorar seus dias idos é justamente a tentativa de encontrar um sentido ou, pelo menos, um esclarecimento para sua vida miserável.
    Agora, se considerarmos este urgente mergulho ao ego um elemento de estética literária, o que temos em mãos é uma reapropriação do narrador de Dom Casmurro, ou mesmo do de Memórias póstumas de Brás Cubas. E a verve machadiana do autor manauara é louvável: não bastasse a hábil revisita a Esaú e Jacó, Hatoum nos agracia também com uma versão de seu próprio Bentinho. Como esse, o narrador de Dois Irmãos é um homem de personalidade humana – imperfeita, portanto – que compartilha conosco, segundo sua óptica, as aflições de seu pretérito e o reflexo dessas em seu corrente. 
     Esse narrador não é neurótico como os de Machado de Assis, mas não pensemos que seja imparcial. Seus relatos são, sim, psicopatológicos e tendenciosos – ele escolhe os episódios de sua biografia. Com efeito, logo de início somos guiados a conceber Omar como o vilão da história, a personalidade enervante que impede o bom andamento do livro e a felicidade da família; bem como somos guiados a nos simpatizar por Yaqub, o intelectual elegante, herói de exílio e amigo solícito. Não que tais veredictos estejam derradeiramente errados... mas, enfim, por que tanto ódio do narrador pelo Caçula? Em poucas páginas, o leitor perceberá que a origem desse ódio é a origem do drama, e aqui entendemos o porquê do autor desejar a estética de um romance de formação para os relatos do narrador: de que melhor maneira esse poderia nos convencer da vilania de Omar (e da bonomia de Yaqub), senão descrevendo-nos minuciosamente as desgraças e vexações pelas quais a família foi obrigada a passar em razão de sua tempestuosidade? Ora, ao longo da história, acompanhamos a desilusão de Zana, o desgosto de Halim, a miséria de Domingas, a penúria de Rânia, a fuga de Yaqub e, enfim, o Dois Irmãos do narrador. Tudo, em absoluto, conseqüência da convicção monofisista que Omar tem de si.
    Ainda, no suprauniverso textual, o narrador nos obriga a culpar o Caçula pelas impressões de sujeira, luxúria e pobreza com que não raro rotulamos a Manaus do livro; assim como somos propendidos a nos cativar por Yaqub e pelo progresso paulistano que representa. Sufocados em tal memorabilia, é impossível não nos sentirmos prisioneiros de nossa própria casca, cativos do submundo e escórias da carne, como o narrador se sente e em cuja cabeça, afinal, estamos.
      Mas... e o que transcende o narrador?

Macroestética
A leitura é agradável, mas a jornada não é fácil

     Uma vez que se fundamenta na miséria, nem sempre o romance nos faz divagar pelos paraísos (físicos e humanos) de Manaus. Na verdade, a imagem bela da cidade é uma imagem distante, a qual só podemos contemplar, jamais tocar – quanto menos, desfrutar. Na maior parte do tempo, somos levados a percorrer uma construção de pedras e palafitas, alienada do restante do país por uma floresta onde a putrescência é cíclica, habitada por pescadores subsistentes e até traficantes profissionais: um circo onde uma vida profícua só é conquistada a penas duríssimas.
   E Hatoum não é piedoso, como não o é este universo. Possivelmente à exceção do narrador (e que esta dúvida fique bem clara), os destinos de todos os personagens estão fadados ao malogro, como se em seus próprios ethos estivesse a perpetuação do desastre familiar, iniciado, primariamente, com o casamento discordante de Zana e Halim: erótico idealista, Halim cede a contragosto à maternidade latente da esposa, sujeição da qual surgirão os gêmeos. Deste ínterim, mais uma vez podemos recorrer à literatura bíblica, já que assim como Caim e Abel, de uma relação adversa nascem Yaqub e Omar.
    E aqui vale uma discussão curiosa sobre a exegese dos nomes. Yaqub é o equivalente árabe para o hebraico Jacó, que significa algo como “aquele que puxa o pé”. Portanto, um nome dedicado a alguém que tenha pelo menos um irmão mais velho. Já Omar significa “o maior” ou, simplesmente, “o primogênito (o primeiro)”. Assim, um nome para alguém que tenha pelo menos um irmão mais novo. Na parábola bíblica, Caim, o pulha, é o primogênito... Certamente o autor não escolheu o nome de seus dois protagonistas principais de forma arbitrária, como não o fez com os demais personagens da trama: Galib (“vencedor”, em árabe), Halim (“humilde” ou “paciente”), Zana (“beleza”), Rânia (“contente” ou “resignada”) etc. Vincular o ethos de um personagem à etimologia de seu nome é uma prática literária que data desde a poesia épica mais antiga, prática conhecida pelo escritor, com certeza. Então, o que propõe Hatoum com esse paralelismo dos nomes? Aliás, nomes que também remontam à parábola de Esaú e Jacó: na Bíblia, Esaú é o favorito de Isaac, enquanto Rebeca privilegia o caçula, Jacó. Não é necessária uma leitura muito extensa do romance para que se perceba o favoritismo de Halim por Yaqub e de Zana por Omar. Inclusive, o excesso de mimos dessa será a maior potência para as atitudes ensandecidas do Caçula – um Complexo de Édipo elevado à enésima potência, que fará com que Omar jamais seja capaz de embarcar nos encargos da adultícia, quanto menos se desatar dos enlaces do útero materno (não raro, sentimos que tanto o narrador quanto o autor culpam Zana por grande parte das desditas da família; bem como elogiam e lamentam os esforços progressistas de Halim).
      O que é mais provável, a intenção do escritor com este paralelismo cruzado é fazer com que o leitor medite, ao longo e após a leitura de Dois Irmãos, a respeito das condições humanas dos gêmeos, afluentes dos meandros das alegorias mais antigas. E com certeza muita pedagogia poderá ser obtida do romance através de um estudo minucioso das morais das passagens bíblicas, além das obras tipicamente literárias. 
     Antes do ponto final, urge que se atente para uma última qualidade do romance, de ordem diegética. Seu português excelente verbaliza uma epopéia familiar que, acima de tudo, não poupa os excessos da lascívia. Com efeito, o leitor não tem outra escolha senão ceder às próprias lubricidades, o que o narrador lhe incita desde o início da tragédia com episódios maliciosamente criativos. E neste ponto, mais uma vez Hatoum se mostra um artista hábil: como Vladmir Nabokov em Lolita, discretamente interessa seu leitor com uma promiscuidade profana, aqui alicerçada no incesto, enquanto põe na boca de outrem (seu narrador) as opiniões e testemunhos sobre tais transgressões; e em paralelo, movimenta em um plano conjugado o verdadeiro drama – os irmãos inimigos. Claro que nem toda a sensualidade do livro se resume às relações intrafamiliares. O autor também explora o voyeurismo, as fantasias da infância e ainda retoma em dois momentos o estereótipo da mulher brasileira erotizada, isto é, a mulata rita-baiana voluptuosa, cujos frêmitos da carne ardem ao som frenético da música nacional (vale ressaltar que essa ardência, ainda que valorize a narração, é uma estética negativa, uma vez que é conseqüência da miséria e da pressão social às quais os protagonistas estão submetidos).
    A obra de Milton Hatoum tem muitos méritos, mas, sem dúvida, as múltiplas dualidades são o que lhe conferem notável prestígio: encontramos referências cruzadas de ordem bíblica e machadiana, aspectos opostos da natureza amazônica, do progresso e da política, sem contar – e certamente o mais interessante – as ambiguidades psicológicas que movem os protagonistas ao longo desta epopéia moderna. O heroísmo frio de Yaqub e o calor destrutivo de Omar. A maternidade galinácea de Zana e a paternidade progressista de Halim. Natureza e pobreza, ordem e progresso, amor e ódio e, até mesmo, catolicismo e paganismo. Narração e autoria.
    Ao longo de elipses e digressões da parte do narrador, o leitor ainda se verá tentado a descobrir os diversos enigmas que pontuam o destino de cada um dos personagens, inclusive o do próprio narrador. Motivações que só fazem melhorar o interesse e a fluidez do romance.

* Aluno de Estudos Literários do IEL / Unicamp

terça-feira, 26 de julho de 2011

Os ouvidos e olhos da burguesia em “O Homem que sabia Javanês”

Gianne Ribeiro Pereira*

A escrita simples e direta de Lima Barreto se contrapõe à linguagem floreada e supérflua de sua época, em que muitos autores escreviam para agradar aos ouvidos da burguesia. Essa mudança na escrita antecipava o movimento modernista, mostrando o caráter avançado do escritor. O mulato carioca, através dessa transformação de forma e conteúdo, atingiu seu objetivo: seus contos atraentes mantêm-se vivos até os dias de hoje, revelando a decadência moral da recém-proclamada República. Neles, narrativas de acontecimentos usuais, tratados de modo aparentemente ingênuo, trazem um tom de crônica, em que o autor usa e abusa da ironia e sátira para denunciar o governo brasileiro.

No conto “O Homem que sabia Javanês”, a narrativa se inicia em um cenário típico da burguesia da Belle Époque: dois amigos se encontram numa confeitaria para travar um longo diálogo sobre suas atuais ocupações e peripécias da vida. Castelo, o protagonista, é construído por Lima como um exemplo do malandro brasileiro. O personagem conquista empregos sem ter o conhecimento necessário e usa de sua esperteza em situações oportunas para se beneficiar. Ao fingir saber javanês, língua falada na ilha de Java, Castelo consegue o emprego anunciado para ensinar essa língua. Tomando nota de apenas algumas palavras em uma enciclopédia, ele faz toda a cidade acreditar em seu inusitado conhecimento. Com isso, é futuramente nomeado cônsul, escreve artigos sobre Java por todo o Brasil e ainda representa o país em um congresso europeu. O conhecido tema da dialética da malandragem, presente em Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida, também pode ser identificado em “O Homem que sabia Javanês”. De fato, tanto Castelo como Leonardo conseguem aproveitar situações propícias e com sua sagacidade e doçura conquistam a confiança das pessoas. O personagem de Lima é nomeado cônsul; o de Manuel Antonio de Almeida, sargento, provando que no Brasil a astúcia pode ser tão útil quanto a instrução.

Não se pode, porém, afirmar que a conquista de um bom emprego dependa somente da malandragem. Há também a colaboração do fator “QI”, o famoso “quem-indica”, outro alvo de denúncias de Lima. A falta de ética profissional de muitos brasileiros é representada no conto pela solicitação da entrada de Castelo na diplomacia por parte de seu aluno, um senhor conhecido e renomado. A crítica se estende aos dias atuais, reafirmando o caráter de “homem à frente de seu tempo” do autor. Pois, como se sabe, muitos brasileiros sofrem exclusão social na tentativa de alcançar um emprego: é difícil alguém desconhecido ser aprovado quando amigos e parentes do contratante concorrem à mesma vaga.

Em “O homem que sabia javanês”, o escritor parte do núcleo do poder para apontar sua injusta distribuição: quem o possui usa-o a seu favor; e muitos desprovidos dele tratam logo de travar uma amizade interesseira com alguém em posição privilegiada. Lima faz ainda uma crítica contundente à futilidade da burguesia. Afinal, Castelo se torna um homem “famoso” pelo simples fato de conhecer uma língua excêntrica. Ao admirá-lo, a burguesia se revela absolutamente ignorante, pois aprecia alguém sem nem mesmo perceber sua falta de conhecimento. Um mero discurso bonito basta para conquistá-los.

* Aluna de Estudos Literários do IEL/Unicamp

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Cultura na cidade

* Amanda Guimarães, Rafael Rodrigues e Monalisa Gomyde


O escritor Alberico Rodrigues/Foto de Ana Laura Ferraz   
Predestinado. É assim que esse professor e escritor sempre foi conhecido em sua família. Nascido no município de Nova Canaã, em meio à Zona da Mata baiana, morou em vários locais do mundo até que resolveu fixar-se em São Paulo. Alberico Rodrigues nos contou que mesmo inserido no imaginário infantil, era diferente das outras crianças. Enquanto seus irmãos corriam atrás de uma bola, ele fazia da areia da praia seu caderno e, lá rabiscava versos imaginários. Enquanto os outros sonhavam em jogar nos grandes estádios, Alberico sonhava em promover a cultura. Hoje, com 64 anos e uma carreira de sucesso como professor e escritor, Alberico é uma das poucas pessoas no país que se podem dar ao luxo de dizer que vive da cultura. O Espaço Cultural Alberico Rodrigues é livraria/sebo, café/salão de arte, casa de shows/teatro. O local não se atém a um único tipo de arte, mas tenta colaborar com todas, apesar de ser assumidamente mais voltado à literatura, de acordo com seu dono. Essa preferência é nítida no Muro Literário, uma parede inteira em homenagem aos grandes nomes da literatura, desde os tempos de Homero até os dias atuais, onde os visitantes podem ver, impressos diretamente nos azulejos que a revestem, fotos e informações sobre escritores.
Alberico nos recebeu de braços abertos para uma conversa sobre o Espaço Cultural.

O Muro literário é uma das grandes atrações do espaço. De onde veio a ideia de construí-lo?



Alberico Rodrigues: O desejo de fazer esse mural que eu chamo “Muro Literário do Alberico” surgiu na universidade. Eu já cursei seis universidades e o que mais me empolgou nelas foi a literatura. Como estudante isso foi nascendo em mim: o desejo de não só ler as obras, mas saber sobre a vida dos autores, a origem deles. Eu fui para a Inglaterra e voltei para o Brasil em 1994. Nessa época já era professor de literatura. Então disse: eu vou construir o meu espaço agora. E aquela homenagem que eu quero fazer aos escritores? Muros sempre dividiram países: o Muro de Berlim, por exemplo. Aí comecei a pensar, por que não pegar um muro e transformar em arte? Montei esse muro devagar, durante oito anos. A base é cronológica: de Homero até hoje, pegando o que eu gostaria de mostrar. Porque o critério é meu. Eu fiz uma homenagem à literatura, ou seja, aos autores considerados de literatura.


E quanto às exposições e apresentações teatrais? Como funcionam?


Alberico Rodrigues: Aqui é um centro cultural. Nosso forte é a livraria, o sebo, os eventos. Há vários eventos culturais: teatro, shows musicais, exposições de artes plásticas. Tem uma peça em cartaz que veio pra ficar dois meses e já está há dois anos, Gandhi: um líder servidor, com João Signorelli. O interessante é que, depois de treze anos de funcionamento do espaço cultural, ele começou a atender artistas de outras cidades do Brasil e de fora do país. Já se apresentou aqui gente de Belo Horizonte, do Rio de Janeiro, da Bahia. Realmente, a cidade adotou esse espaço cultural e ele já faz parte de sua vida.


Por que São Paulo? Nunca pensou em criar o Espaço em outro lugar?

Alberico Rodrigues: Eu pensei. Morei um tempo em Nova York e, quando voltei ao Brasil, não queria morar em São Paulo. É um desgaste muito grande. Qual a primeira cidade que me veio à cabeça? Rio de Janeiro. Fui para o Rio e fiquei lá quatro anos sem conseguir fundar esse centro cultural. Um dia eu estava bem inquieto, fui dormir e tive um sonho que não me deixou ficar na cama. Aí eu peguei a minha sacola, fui para a rodoviária e vim para São Paulo. Cheguei aqui e encontrei uma casa com a placa de “vende-se”. Resultado: comprei a casa. Meu umbigo parece que foi jogado aqui nessa terra. Foi aqui que eu tinha que fazer meu projeto.


Sobre a criação do Espaço: foram muitas as dificuldades para conseguir se estabelecer?

Alberico Rodrigues: Muitas. O Brasil ainda não está incentivando adequadamente as iniciativas culturais. Por exemplo: eu pago muito imposto. Nunca tive incentivo. Você vai até a prefeitura tentar apoio e não encontra. Mas o governo vem melhorando. Essa lei de incentivo à cultura [Lei Rouanet] é uma iniciativa, só que ainda precisa ser aprimorada.

E de onde surgiu esse interesse pela literatura?

Alberico Rodrigues: Eu nasci numa fazenda no sul do estado da Bahia, na Zona da Mata. Nesse lugar não tinha estudo. E parece que eu nasci predeterminado a gostar de ler, de escrever. Ainda era analfabeto, mas quando minha mãe levava os filhos à praia em Ilhéus, no final de semana, pegava um pedacinho de pau e marcava a areia como se fosse uma página. E ficava tentando escrever versos para minha mãe. Coisas de filho para mãe. Foi ali que nasceu, talvez, uma predestinação. Existe todo um itinerário que eu conduzi: o interesse pelos livros; a minha vida de escritor, que hoje está dando certo. Na realidade, eu gosto de escrever sobre fatos reais. Acho que eu mesmo escrevo a minha saga.



* Alunos de Estudos Literários do IEL / Unicamp

terça-feira, 5 de julho de 2011

No fim era o verbo

*Renata Galvão Peres

“Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida de meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal de origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai.”


O trecho acima pertence ao livro Dois Irmãos, de Milton Hatoum. Sua estória (com “e” mesmo, como em Guimarães Rosa) se passa no seio de uma família de origem libanesa que habita em Manaus e se inicia por volta da Primeira Guerra Mundial, terminando no período em que a ditadura militar no Brasil começa a mostrar as garras. Apesar do cenário um tanto peculiar e com toques de cor local (imagens, sabores, sons etc.), o relato lucra ao não permitir uma redução ao exotismo. Para evitar essa queda numa visão distanciada, dois recursos parecem ter sido usados. O primeiro tem a ver com suas intertextualidades e a evocação de imaginários amplamente divulgados a ponto de poderem ser tidos como universais. Já o segundo, relaciona-se com seu narrador, membro da casa, e cuja proximidade não permite que encaremos o cenário ou as personagens com a estranheza de um estrangeiro.

Um forte diálogo com a base da cultura judaico-cristã é expresso em inúmeras referências bíblicas, evocando o inconsciente ocidental (e, por que não, o oriental, levando em conta países como o próprio Líbano). Mesmo quem nunca parou para ler a Bíblia, provavelmente tem internalizadas as histórias de Esaú e Jacó, Caim e Abel, ou o Cântico dos Cânticos. Estas são referências tão tradicionais que se podem considerar universais, principalmente porque retratam uma infinidade de experiências comuns ao ser humano, como o ciúme, a inveja e a paixão. Ainda no campo das alusões, não se pode esquecer o imaginário da contação de histórias. A configuração do relato faz referência tanto ao caboclo contador de causos, quanto às famosas histórias árabes consagradas pelas Mil e Uma Noites. Dos textos sagrados monoteístas aos mitos fundadores indígenas, encontra-se nos intertextos de Dois Irmãos uma espécie de elogio à memória. Sua narrativa não linear e as inúmeras camadas e pontos de vista prendem o leitor em uma espécie de labirinto em busca das origens, da verdade, do desvelamento, da alétheia (antônimo de esquecimento).

Quem nos conduz por essa casa de Asterion é Nael, narrador cujo nome só aparece uma vez e que vai surgindo timidamente ao longo do relato. Por sua condição de bastardo, transita entre o ser e o não ser. Assim, nas histórias que ouve e reconta, faz a ponte entre o dentro e o fora ou entre a naturalidade e a estranheza. Tal posição nos ajuda a desnaturalizar certas convenções sociais ou familiares que, como em Machado de Assis, são muitas vezes tão cruéis quanto a escravidão. Assim, por meio desse narrador, o maniqueísmo é evitado, mas as denúncias são feitas. Mostra-se um Brasil injusto e perversamente afetuoso, uma pequena amostra de como os valores familiares e sua estranha estrutura encobre, com tradições e afetos, realidades tão duras quanto a guerra ou a ditadura (como o semiescravismo, o incesto e a loucura) e, por isso, com maior emergência de serem expostas e discutidas em um país que se diz tolerante e pacífico. Em meio à truculência no Estado, à decadência da cidade, à morte e à desgraça das personagens, o que sobra é o relato, a memória e a possibilidade de reflexão. O que resta é o verbo.

* Aluna de Estudos Literários do IEL / Unicamp

segunda-feira, 4 de julho de 2011

O piadista nerd

* Caroline Beatriz Mott Silva

Toda sala de aula tem um aluno meio deslocado, que senta na primeira fileira e tira as maiores notas. Mas sabia que ele também pode ser um piadista? Essa é a aposta do livro Piadas Nerds – O melhor aluno da classe também sabe contar piada (Editora Verus), dos amigos e estudantes da Unicamp Ivan Baroni, Luiz Fernando Giolo e Paulo Pourrat.

O livro reúne mais de cem piadas organizadas em oito grandes temas, como matemática, ciências humanas, séries de televisão e cultura nerd. Todas foram compiladas do twitter do trio (@PiadasNerds). Criado em 2009, o perfil surgiu do desejo dos rapazes de reunir e divulgar essas piadas que divertem os seguidores da cultura nerd. Hoje, ele já conta com mais de cem mil seguidores. “Achamos algumas piadas na internet, mas a grande parte delas foi enviada pelos nossos seguidores do twitter”, diz Luiz Fernando Giolo.

O livro se destaca não somente pelas piadas, mas por representar algo que tem ganhado cada vez mais destaque: a cultura nerd. “A estrela do nerd tem brilhado cada vez mais. Somos os indivíduos mais adaptados à era da informação. (...) Como diz o slogan da série The Big Bang Theory, ‘Smart is the new sexy’ [Inteligente é o novo sexy]”, escreve Ivan Baroni na introdução da obra. Diferentemente dos nerds das décadas passadas, os de hoje têm orgulho do que são: “não é muito difícil, quem sabe até nem necessário, muito esforço para dar uma injeção de autoestima nos pequenos ‘CDFs’ espalhados pelas salas de aula desse mundão”, contam os três autores, em entrevista concedida por e-mail.

Como surgiu a ideia de publicar um livro com piadas nerds?

Já havíamos acumulado muitas piadas durante esse um ano e meio de existência do perfil @PiadasNerds. Tínhamos também várias ideias que só funcionariam em textos mais longos. Então, ficamos entre fazer um site ou um livro. Como ter um site é “abrir a caixa de Pandora”, decidimos fazer o livro, que é muito mais impactante.

Foi difícil encontrar uma editora?

Fizemos uma pesquisa de campo procurando por editoras que tinham lançado livros com o nosso tema, ou seja, descartamos aquelas que publicam livros de autoajuda etc. Quando a Verus recebeu nosso contato, rapidamente eles nos “acolheram”, pois sabiam do potencial do livro e do “mundo nerd”.

Como foi o processo de selecionar as piadas? Quanto tempo demorou?

Nós somos muito organizados com nossos twitts: colocamos todos em uma planilha com várias informações, como o número de retwitts, a data, a categoria etc. Então para separar as piadas em capítulos foi só adicionar alguns filtros. Mas para organizá-las de uma forma que os assuntos ficassem contínuos levou várias noites em claro. Somos muito perfeccionistas e queríamos deixar o livro impecável. Vocês podem conferir o resultado.

O que ajudou o livro ser aceito?

A tendência hoje do ensino educacional é se tornar cada vez mais humorístico, com canções, piadas e mnemônicas para prender a atenção do aluno e fazer com que ele guarde determinados assuntos. Essa é basicamente a nossa proposta, misturar o humor com a ciência. Todas as nossas piadas têm algum fundo científico correto, algumas mais, outras são apenas trocadilhos. Recebemos vários comentários de professores que usaram algumas de nossas piadas para ajudar os alunos a se lembrarem do assunto, ou cujos alunos se lembraram de nossas piadas na hora de uma prova e isso os ajudou. Ou seja, nosso livro é de humor inocente e cientificamente correto, aceito em todas as idades e comunidades.

Para vocês, o que é ser nerd?

Diferente de antigamente, quando para buscar informações a pessoa tinha que ir até a biblioteca, hoje o acesso é muito fácil e direto. Qualquer pessoa pode procurar o que quiser na internet a qualquer momento. Todo aquele que está à procura de algum conhecimento já pode ser considerado um nerd. Mas há diferentes tipos de nerds. Aquelas pessoas que gostam de Star Wars [Guerra nas Estrelas], The Big Bang Theory [série do canal pago Warner] ou videogame são consideradas nerds por causa da cultura em que estão inseridas, e não são necessariamente estudiosas. E claro, na maioria dos casos, há a intersecção dos inteligentes com a cultura.

Os nerds de antigamente e os de hoje são iguais?

Definitivamente não. Os de antigamente foram representados em vários filmes dos anos 90 como aquele nerd “babão” que usava gravata borboleta e se submetia ao bullying. Hoje essa tribo está diferente e em um número maior. Diferentemente do passado, os nerds de hoje têm orgulho de pertencer a essa tribo.


A internet teve alguma importância nessa "onda nerd"? Por quê?

A cultura nerd esteve ativa desde muito tempo, principalmente com filmes como Star Wars, ou seriados de ficção científica como Star Trek [Jornada nas Estrelas]. Essa onda, porém, não chegava a todos os públicos, ao contrário de hoje, em que o acesso à informação é muito fácil e rápido por conta da internet, sem contar que esta é uma grande ferramenta para reunir e criar grupos de amigos.


Além de uma mudança cultural, essa “onda nerd” pode ser considerada uma mudança social?

Acreditamos que sim. É possível enxergar algumas estruturas básicas mudando. Hoje não é muito difícil, quem sabe até nem necessário, muito esforço para dar uma injeção de autoestima nos pequenos “CDFs” espalhados pelas salas de aula desse mundão. Eles se sentem inseridos num grupo e já não tentam mudar seu jeito de ser em busca de aceitação.

Há preconceitos contra os nerds?

Infelizmente há preconceito contra tudo, e com o nerd não é diferente. Entretanto isso vem mudando de uns tempos para cá. Além das pessoas adquirirem mais conhecimento e educação, a cultura nerd está se espalhando gradativamente e adquirindo adeptos, vindos de variados meios sociais. Isso faz com que as pessoas conheçam melhor o nerd e o aceitem mais facilmente. Por outro lado, a sociedade é fractal e dentro do meio nerd também há preconceitos.

Quais são os principais símbolos nerds?

Existem muitos. Há os clássicos, como a famosa saudação “vida longa e próspera” dita por Spock [de Jornada nas Estrelas], o número 42, que é a resposta da pergunta fundamental sobre a vida, o Universo e tudo mais, do livroGuia do Mochileiro das Galáxias, o Darth Vader [de Guerra nas Estrelas], e outros.


Houve algum momento memorável ou engraçado relacionado ao lançamento do livro?

O próprio lançamento foi memorável! Também foi engraçado quando fomos à primeira reunião com a editora da Verus, para conversar sobre o livro. Levamos todo um material com gráficos e tabelas para apresentar melhor a nossa proposta. Ela disse que nunca na história da editora alguém levou gráficos para publicar um livro.


Vocês planejam lançar continuações do livro? Quando?

Estamos pensando em lançar sim uma continuação do livro, pois nosso acervo de piadas continua crescendo e temos boas ideias para incrementar.


Quais são as piadas favoritas de cada um?

Ivan Baroni: Por que h(x) não tem segunda derivada? R: Porque h' tem bico.

Luiz Fernando Giolo: Três pontinhos não colineares estavam conspirando: "Acho que temos um plano!"

Paulo Pourrat: Está preocupado com o planeta e se pergunta como poderemos salvá-lo? Levante suas mãos e ajude Goku a fazer a Genki Dama!


* Aluna de Estudos Literários do IEL / Unicam
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‘O papel da crítica é pensar a crise ou mesmo gerar crise’

* Marcela Del Bianco Luppi e Laura Jaskow Bellini

Professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, Alcir Pécora diagnostica uma crise existente hoje no campo literário: “É como se a literatura inteira tivesse perdido a graça, a capacidade, enfim, de intervenção em nós”. Ele não aposta, contudo, na busca por caminhos para superar esta situação. Sua disposição atual é mesmo bem diversa: “Teríamos de mergulhar na crise, sofrer até o fim a nossa falta de graça, a nossa banalidade sem fim aparente, para então, quem sabe, começar a entender”. Essa disposição, vale dizer, é repleta de ligações com sua própria concepção da crítica. Pensada em termos genéricos, esta teria como papel problematizar o campo simbólico. Crítico atuante na imprensa há décadas, Pécora passou recentemente a assinar uma coluna mensal na revista Cult, sobre a qual também comenta nesta entrevista, pontuada por opiniões marcantes.

Em abril, o senhor virou colunista da Revista Cult. Qual o perfil que pretende imprimir a sua coluna?

Alcir Pécora: Penso apenas em fazer o que já faço há anos na Folha de S. Paulo e em outros jornais e revistas: comentários de livros saídos recentemente. No caso da Cult, entretanto, não tenho obrigação nenhuma de escrever sobre livros novos, ou outros. Como eles dizem, não tenho pauta. Apenas costumam me mandar uma vez por mês um pacote de livros, e eu posso, ou não, escolher um ou mais de um deles para resenhar. Escolho sempre pelo faro do momento, isto é, pela minha disposição de ler naquela hora. Essa história do faro é muito importante para mim: passo os olhos numa montanha de livros e fico sentindo algum tempo qual a minha disposição para ler algum deles. Essa disposição muda muito: eu mesmo não saberia dizer de antemão o que me leva a escolher este ou aquele, a cada vez: quando há um livro extraordinário, o chamado “clássico”, em geral o escolho; mas, por vezes, se vejo um livro com cara de tonto, desde que seja fino, há dias em que eu o escolho também. Mais raramente, como aconteceu exatamente neste mês, por mais que eu tente, não consigo achar nada que me agrade em meios aos livros enviados. Então eu mesmo vou à livraria e procuro um livro que me apeteça imediatamente sentar e ler, para depois escrever sobre ele. Há muitas possibilidades, e, como lhe disse, nunca tenho nada predeterminado, não me prendo a nenhum grupo de favoritos.

Em sua opinião, qual o papel e a importância do jornalismo cultural hoje?


Alcir Pécora: Não sei se hoje, ou desde sempre, quer dizer, em termos genéricos de “papel”, penso em jornalismo cultural como tendo ao menos uma dupla função articulada entre si. Uma, é a de informar sobre os eventos culturais da cidade e do mundo, por meio de reportagens precisas (de preferência com reportagens de primeira mão e de matérias traduzidas de fontes autorizadas), o que inclui também os vários serviços que facilitem o encontro das obras com o público. A outra função, implicada nessa primeira, é a de permitir que se forme um leitor que usufrua qualitativamente da cultura, um leitor exigente, o que se dá por meio da crítica desses eventos tendo em vista a sua composição como obra de arte e o conhecimento da sua relação com o legado cultural do país e do mundo. Para que isso seja possível, é interessante contar com críticos que disponham de um bom repertório de leitura de textos literários e teóricos e, também aqui, com críticos que não sejam exclusivamente locais.


E o papel da crítica literária?


Alcir Pécora: Quantos papéis! É preciso pensar de forma tão categórica? Em geral, acho que não: convém mais problematizar os papéis para ser capaz de ver além de uma naturalização de procedimentos contingentes. Mas não vou fugir da resposta, uma vez que se trata de uma conversa no âmbito de uma introdução didática ao assunto do jornalismo cultural. Em minha opinião, genericamente, o papel da crítica é pensar a crise ou mesmo gerar crise, isto é, descobrir formas fecundas de problematizar a produção cultural e seu campo simbólico.

Em seu artigo “Impasses da literatura contemporânea”, o senhor expressa uma opinião negativa a respeito da crítica contemporânea. Que caminhos a crítica poderia tomar para superar essa condição atual?

Alcir Pécora: De fato, não tenho nenhuma pista de superação dessa situação de impasse. Nem acho que quero ter uma. Ao contrário, acredito que devíamos adiar a ideia de superação em favor de uma disposição decidida para mergulhar até o fundo do poço. Talvez pareça uma inclinação masoquista. Porém, é tão mais importante pensar a crise quando há hoje uma resistência enorme para enfrentá-la, o que se pode reconhecer também como um desejo muito nítido de normalizar a falta de crítica. Mas isso é até a melhor face da desistência da crítica. A pior é a mixórdia da vida cultural brasileira. Dessa não há meio de escapar. Olhe para São Paulo, supostamente a cidade mais desenvolvida do país, e veja esse caso dos moradores de Higienópolis se recusando a receber o metrô por causa de gente “diferenciada”? Pode haver atitude mais preconceituosa e ignorante ao mesmo tempo? Se quiser olhar mais perto, veja Campinas, por exemplo: uma cidade grande para uma escala europeia e até norte-americana: o que você vê, em termos culturais, senão um deserto? Às vezes eu também penso que o fantasma do canavial derrubado para criar a Unicamp continua a nos assombrar. Não quer dizer também que devemos pregar o apocalipse. Pois, a pensar em apocalipse, suspeito que ele já tenha se dado, de modo quase imperceptível, ao longo dos últimos trinta anos. Parece que estamos experimentando uma sobrevida, num processo estranho, meio assombrado como disse, de elogio da evaporação, do supérfluo. Acho que devemos estar sendo atacados por uma virose que dissemina alguma euforia da irrelevância. Talvez seja um processo natural, depois de um processo de devastação que veio e doeu, mas não sabemos exatamente quando ou onde.

Qual a influência da crítica na literatura atual?

Alcir Pécora: A pergunta está posta em termos genéricos, e então, falando genericamente, acho que ela não tem qualquer influência relevante – pois se não há praticamente crítica! A que existe, como lhe disse antes, me parece mais ou menos a reboque da produção de mercado, uma forma de legitimação universitária daquilo que se explica mais como fenômeno econômico ou sociológico do que como ocorrência irredutivelmente cultural. Mas quem legitima a universidade que exista apenas dobrada ao mercado? A universidade séria, se certamente não pode ignorar o mercado, mantém a sua autonomia de invenção em relação a ele. Ela não existe para servi-lo apenas, mas para inventar alternativas a ele. Já a crítica não universitária, a dos jornais, sofre muito com o esvaziamento de seus quadros mais eruditos e mais ou menos terceirizou os seus serviços ou para gente da universidade ou para os serviços de release das editoras. O mais são blogues, que até onde sei (mas não sei muito) são apenas crítica amadora, incidental, e muitas vezes, besteirol grosso, o que não é problema, se o besteirol não alucinar em mitomania. De qualquer maneira, mesmo esse tipo de ação mais localizada e conformada da crítica pode ser informativa, elucidativa, didática, até formativa. Apenas não é crítica, no sentido forte: o de problematização da cultura. Há exceções naturalmente, mas exceções não geram influências generalizadas.

Há algum escritor contemporâneo que tenha "força literária", expressão empregada pelo senhor no artigo citado? Poderia dizer quais são esses escritores?

Alcir Pécora: Há vários escritores interessantes, mais fora do Brasil que no Brasil – aliás, essa euforia do Brasil emergente, em cultura, é apenas resíduo patrioteiro, de que, por desgraça, os intelectuais brasileiros não sabem abdicar, tão arraigado neles está o sentido provinciano de formação de um país. Mas também no Brasil há obras e autores de valor. Poderia citar vários deles, mas prefiro dizer, em geral, que a crise atual é menos de autores que de falta de imantação e energia do próprio campo literário, que já não consegue ter a mesma significação cultural de outros tempos. É como se a literatura inteira tivesse perdido a graça, a capacidade, enfim, de intervenção em nós, de nos obrigar a mudar, de pautar as nossas preocupações mais imediatas e mesmo de comover a inteligência. Você lê alguém legal, e diz: legal. Foi bom enquanto durou. Aí, fecha o livro e esquece. Mas o incrível é que isso geralmente só ocorre com a literatura contemporânea. Se você lê Homero ou a Bíblia, Platão ou Cícero, Dante ou Petrarca, Camões ou Vieira, Machado ou Pessoa, Dostoiévski ou Joyce... tudo fica eletrizado novamente. Os mortos estão mais vivos que os vivos, o que, em matéria literária, não é inusitado; mas agora parece que a literatura viva é exclusividade dos mortos. Esse é um modo de ver; mas há ainda um outro lado, talvez mais preocupante para a literatura contemporânea: também ensaístas e teóricos contemporâneos parecem bem mais comoventes e inventivos em seus textos do que os escritores, ainda presos em modelos de narrativa romanesca romântico-realista ou em poesia de tipo expressiva, mesmo que mal ou bem disfarçada em abstrações de poesia. Quer dizer, a literatura contemporânea parece perder tanto para a concorrência dos “clássicos”, como para a dos teóricos da cultura. Por quê? Eu teria algumas hipóteses a propor, como a da atual inflação simbólica e outras razões que mencionei naquele meu artigo de O Globo que você citou. Porém mais importante do que isso é o fato de que, em qualquer caso, teríamos de mergulhar na crise, sofrer até o fim a nossa falta de graça, a nossa banalidade sem fim aparente, para então, quem sabe, começar a entender, a levantar o fio da meada e tentar esticá-lo na direção de uma saída possível. Antes disso, responder é desviar.

* Alunas de Estudos Literários do IEL / Unicamp

segunda-feira, 6 de junho de 2011

O malandro nacional e o intelectual exótico

Marcelo de Oliveira Vieitez*

Lima Barreto não fez parte da Academia Brasileira de Letras. Sabe-se que seu estilo literário nunca se harmonizou com os padrões da época, da mesma forma que sua vida nunca se harmonizou com o sistema social estabelecido naquele período. Talvez sejam estes os motivos de maior peso para que suas histórias demonstrassem tanta ironia, fossem tão reativas e conseqüentemente tão vivas. Se por um lado a Academia sugeria a dominância de certos estilos literários através de um grupo seleto de escritores, por outro Lima indicava a existência de bons escritores do “lado de fora”, caminhando pela margem e oferecendo um material diverso, não menos excelente. O conto “O homem que sabia javanês” ilustra com ótimo (e também ácido) humor a antipatia que nutria por certas classes sociais. E os intelectuais não ficam de fora.
Castelo é um homem que, apesar do título de bacharel, vive de vigarices. Ele narra ao colega Castro as peripécias que tem feito para sobreviver, entre elas (pois pegamos a conversa no meio) a história que o eleva ao cargo de cônsul, que dá corpo ao conto. A aposta com o leitor é alta. Lima nos desafia à leitura com um duplo absurdo. Como um trapaceiro, sem um tostão no bolso, que mente saber javanês e chega ao status de cônsul de um país, alcança tal façanha? E como ele, o escritor, pode nos convencer disso com tão poucas linhas? É difícil resistir à curiosidade de saber como o personagem consegue, e se o autor cumpre o que promete. Quando Chico Buarque compôs a canção na qual um malandro “quebra” a economia do país por não pagar uma dose de cachaça, temos algo similar, para fazer paralelo com algo mais notório. Mas Lima vai além de uma boa sacada em termos de narrativa e nos causa uma sensação tão surpreendente quanto incômoda. Ao terminar a leitura, pode ocorrer a alguns um pequeno arrepio ao perceber que o absurdo é mais real do que parece, a sensação de que isso acontece o tempo todo em nosso país. Por trás de todo o humor percebemos Lima falando da miséria que assola nossas elites, governantes e intelectuais. Como vamos separar quem sabe de quem finge saber?
      Por que Lima não fez parte da ABL? Antiquado demais? Pouco provável. À frente de seu tempo? Talvez. O fato é que, apesar do conto ter muita relação com sua vida real, não precisamos saber nada a respeito de Lima Barreto para se ter uma ótima experiência com a leitura. É isso que demonstra uma literatura viva. Ela continua sem o autor. Não adianta relegá-lo à margem. Do duplo absurdo oferecido por Lima resulta uma dupla realidade: um personagem indicando quanto charlatanismo pode haver por trás de títulos importantes. E um escritor que não precisou de títulos para se tornar relevante.

*Aluno de Estudos Literários do IEL / Unicamp

sábado, 4 de junho de 2011

Encontros com o fantástico

Thabata Reis de Mesquita*

Com o objetivo de confrontar opiniões e incentivar a discussão sobre literatura fantástica, o simpósio Fantasticon chega a sua quinta edição este ano. Para o seu organizador e idealizador, o editor Silvio Alexandre, o evento não deve ser entendido como uma convenção, mas tem como finalidade justamente a busca pelo debate. Afinal, explica ele, o fantástico “não pode ser encarado como uma manifestação literária estática e amorfa”, e sim como “um gênero em constante transformação, reescrevendo-se de acordo com a época.”
Este ano, o Fantasticon será realizado na Biblioteca Pública Viriato Corrêa, na Vila Mariana, em São Paulo, entre os dias 12 e 14 de agosto. O evento contará com a tradicional mesa-redonda composta por editores e com o encontro do GELF (Grupo de Estudos de Literatura Fantástica). Participação ainda desta edição os escritores André Vianco, Eduardo Spohr, Raphael Draccon e Luiz Eduardo Matta, entre outros.

Como surgiu a ideia do Fantasticon?

Silvio Alexandre: Sempre estive ligado à literatura fantástica. Primeiro, como leitor, e depois trabalhando profissionalmente com o gênero. Desde a minha época da escola, criei ou ajudei a organizar eventos culturais, então, nada mais natural que eu idealizasse um evento do gênero. Em 2007, propus a realização de um seminário de literatura fantástica dentro do Encontro Internacional de RPG, promovido pela editora Devir. Na época, o principal e maior evento de RPG do Brasil. Eles adotaram a ideia e, assim, o Fantasticon passou a ser um evento integrante do Encontro Internacional. Ao optar pela forma de simpósio, procurei reunir amigos e colegas para trocar ideias, buscar saber, além de um criar um lugar para se divertir. Um evento que contasse com a participação de pessoas variadas discutindo determinados assuntos, onde o objetivo principal fosse a realização de um intercâmbio de informações. Além disso, também existe uma explicação afetiva: em 1969, aconteceu no Rio de Janeiro o Simposium de Ficção Científica. Foi um importante evento de ficção científica dentro de um enorme Festival de Cinema. Fazendo um paralelo, imaginei um importante evento de literatura fantástica dentro de um enorme evento de RPG. Assumidamente, busquei inspiração no Simposium de 1969 para fazer o Fantasticon. Por isso, não é correto pensar o evento como uma convenção de fãs ou grafar "FantastiCon", como alguns fazem. Minha definição de convenção é de um acordo, um contrato, de algo que é "convencionado", aceito. E o meu objetivo é o confronto de opiniões, o debate de ideias, a apresentação de pesquisas e, acima de tudo, a busca pelo saber!



Como são selecionados os livros lançados durante o simpósio? São indicações das editoras ou os próprios autores entram em contato?



Silvio Alexandre: A seleção dos lançamentos acontece de duas formas. Na primeira delas, as próprias editoras entram em contato conosco e propõem o lançamento. Elas sabem que o perfil do público do Fantasticon é o mesmo dos seus livros de literatura fantástica. E mais, sabem que o público presente é formador de opinião e capaz de fazer uma excelente divulgação. Assim, trata-se de um espaço apropriado para seus lançamentos. A segunda forma se dá pelo meu contato com as editoras propondo o lançamento. Neste caso, busco aliar a temática ou gênero do livro com alguma mesa-redonda, bate-papo ou atividade que teremos. Procuro sempre fazer com que tudo tenha uma ligação. Como já trabalhei como gerente de marketing, entendo que um evento é a soma de esforço e ações planejadas com o objetivo de alcançar resultados definidos.

Como são escolhidos os temas do evento?

Silvio Alexandre: A proposta do evento é incentivar o estudo e o debate sobre o fantástico no Brasil através de palestras, mesas-redondas, oficinas, exposições, lançamentos, tudo isso com muita confraternização entre o público e os escritores. Dizem que o Fantasticon lança tendências. É nele que aparecem as perguntas e os temas sobre literatura fantástica que percorrerão twitter, blogs, facebook e comunidades do orkut durante o ano. Acho relevante dizer que, na minha visão, as definições e os estudos sobre o fantástico estarão sempre incompletos. Com isso, quero dizer que o fantástico, a despeito de estudos mais tradicionais, não pode ser encarado como uma manifestação literária estática e amorfa. Para mim, ele é um gênero em constante transformação, reescrevendo-se de acordo com cada época. Ou seja, os temas do Fantasticon são sempre relacionados ao moderno entendimento de literatura fantástica: ficção científica, fantasia e horror. Pensando sempre nas relações do texto com seus pressupostos históricos, sociais e culturais.

Como será a programação desta quinta edição?


Silvio Alexandre: Ainda não fechamos todas as atividades deste ano e estamos acertando os palestrantes, mas, como sempre, teremos a tradicional mesa-redonda O Mercado Editorial de Literatura Fantástica no Brasil. É um bate-papo com quem toma as decisões no mercado editorial brasileiro, apresentando as novidades, informações e curiosidades do gênero no país. Também está confirmado o encontro do GELF (Grupo de Estudos de Literatura Fantástica), coordenado pela escritora Rosana Rios, que se dedica a discutir, apreciar e divulgar obras de literatura fantástica. No ano passado, fizemos a Fantastiquinha, uma atividade para as crianças que deu muito certo e que será repetida nesta edição. Além disso, a literatura fantástica de Dostoiévski será apresentada pelo professor Flávio Ricardo. Ele estabelecerá uma relação entre o ensaio "A filosofia da composição", de Edgar Allan Poe, com as narrativas fantásticas de Dostoiévski.


E quais autores participarão do simpósio?

Silvio Alexandre: Os escritores André Vianco, Eduardo Spohr, Raphael Draccon e Luiz Eduardo Matta farão uma mesa sobre literatura de entretenimento. Também teremos uma palestra sobre sexo e ficção científica, com o escritor Gerson Lodi-Ribeiro. Relacionamentos sexuais e afetivos entre humanos e alienígenas, embora não seja novo, constitui um dos filões mais fecundos da ficção científica atual. Uma das oficinas será sobre A Jornada do Herói, com o escritor e editor Gianpaolo Celli. Trata-se do conceito de jornada cíclica, introduzido por Joseph Campbell. Além disso, atualmente temos uma grande produção de literatura fantástica e de gênero que usa a história como matéria-prima em sua construção. Autores como Christopher Kastensmidt, Max Mallmann, Roberto Causo e Ana Cristina Rodrigues irão discutir essa escolha e conversar sobre como a disciplina história se entremeia no fazer literário; a pesquisa que é necessária; a escolha e a procura de fontes; a decisão entre a fidelidade ao factual e a liberdade de criar.

* Aluna de Estudos Literários do IEL / Unicamp

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Um mutirão teatral

Amanda Campos Rix e Vinícius Salomão Branquinho*


        Durante os meses de maio e junho, os atores do Barracão Teatro, juntamente com outros artistas barão geraldenses, realizam a Ação em Prol do Barracão. A campanha visa à arrecadação de fundos para uma ampla reforma na sede da companhia. Cobrando tradicionalmente os ingressos no chapéu, o grupo possibilita a cada espectador valorar a experiência vivenciada durante as apresentações. A mensagem, que convida à reflexão acerca da importância da arte, chega agora com um adendo: além de atribuir um preço ao espetáculo, o público contribui para as melhorias necessárias ao seu conforto. Afinal, é ele o grande beneficiado.
      A Ação conta com a participação de artistas da cidade de Campinas que atuam em suas próprias sedes, mas enxergam no Barracão um espaço de integração entre diferentes grupos e de grande aproximação com o público. Solidários à necessidade de reformas, esses artistas propuseram-se a apresentar seus trabalhos na sede da companhia e remeter seus cachês à causa. O próximo espetáculo em prol do Barracão será “Alucinações”, encenado pelo ator Darko Magalhães nos dias 4 e 5 de junho.
    Outro grupo que já participou da campanha foi o Los Circo Los, com o seu infantil “Circulando”. Na abertura desse espetáculo, no último dia 14, a diretora e dramaturga Tiche Vianna, uma das fundadoras do Barracão, explicou a proposta da campanha, atribuindo a esta uma dimensão comunitária. “A Ação é uma forma de fazer com que a comunidade contribua com o espaço do qual desfruta”, resumiu. O grupo se propôs a prestar contas ao seu público, expondo no seu site (www.barracaoteatro.com.br) os ganhos de cada espetáculo, seus respectivos custos e o lucro obtido para as reformas. Comprometeram-se ainda a explicitar com detalhes todos os gastos.
      Formado em 1998 por Ésio Magalhães e Tiche Vianna, o Barracão é nacionalmente reconhecido pelo seu trabalho. Seus integrantes já foram contemplados com prêmios de relevo, como o de Estímulo ao Teatro Funarte/Petrobrás e o de Fomento ao Teatro Myriam Muniz Funarte/Petrobrás. Ésio Magalhães foi ainda, por duas vezes consecutivas (2007 e 2008), indicado ao Shell de melhor ator, com os espetáculos “A Julieta e o Romeu” e “Encruzilhados entre a Barbárie e o Sonho”. Responsável por todas as etapas do processo de criação de seus espetáculos, a companhia possui atualmente seis peças de sua autoria. Trabalha também na criação dramatúrgica e na direção de espetáculos de grupos associados.

* Alunos de Estudos Literários do IEL / Unicamp

sábado, 28 de maio de 2011

Poesia digital: dos computadores isolados às tecnologias móveis

Maira Fuzaro e Ricardo Schinaider de Aguiar*
        Obra pioneira no Brasil, Poesia Eletrônica: negociações com processos digitais ganhou recentemente uma versão ampliada. De autoria do pesquisador da Unicamp Jorge Luiz Antonio, a mais recente edição chega com novo título e em versão bilíngue. Em Poesia Digital: teoria, história, antologias (Navegar Editora, Fapesp e Luna Bizonte Pnode), o autor faz uma análise teórica e traça um panorama histórico do tema. O livro traz ainda um DVD que reúne duas antologias: de poemas digitais e textos teóricos representativos. Ao todo, mais de 500 poemas de autores brasileiros e estrangeiros podem ser consultados na obra. Entre eles, muitos que não podem ser encontrados na rede. “Os critérios para a escolha dos poemas estão baseados, em um primeiro plano, nas relações da poesia com as artes, design e tecnologia digital”, explicou Jorge Luiz Antonio, em entrevista concedida ao blog Jornalismo do Livro.

Como se interessou pela poesia digital?
Jorge Luiz Antonio: Em 1996, assisti a uma palestra de E. M. de Melo e Castro e passei a me interessar pela poesia experimental portuguesa, que é um produto interdisciplinar, ou seja, composta de poesia, arte, design e tecnologia. No ano seguinte, fiz um curso de infopoesia e poesia sonora com o Melo e Castro e, de lá para cá, o interesse pela poesia digital se intensificou, pois a facilidade com que ele usa criativamente a tecnologia é fascinante e motivadora. Duas outras pessoas foram igualmente motivadoras: o canadense Jim Andrews, que me recebeu no grupo eletrônico Webartery em 2000 e me apresentou novos horizontes; e, a partir de 2002, a amizade com Chris Funkhouser, que foi significativa para compreender mais a poesia digital.

Poderia falar um pouco sobre o panorama da poesia digital no Brasil e no mundo?

Jorge Luiz Antonio: A poesia digital no Brasil existe desde 1968 e vem crescendo significativamente. Em outros países, ela surgiu antes: em 1959, na Alemanha; 1960, nos EUA; 1961, na Itália. Este é o momento de computadores isolados. A partir do surgimento da rede, em 1989, há um crescimento da poesia digital, especialmente pela facilidade de divulgação no ciberespaço. É o período do computador coletivo, em rede. As tecnologias móveis (celulares, e-readers, iPods, etc.), a partir dos anos 2000, permitiram uma divulgação mais ágil, em tempo real.

Qual o cenário atual da poesia digital no Brasil?

Jorge Luiz Antonio: A recepção da poesia digital vem crescendo significativamente, especialmente a partir do surgimento da rede. Além disso, estudos sobre a cultura digital têm chamado a atenção para o uso criativo das tecnologias digitais. Recentemente, a Funarte instituiu um concurso de bolsas para pesquisas sobre a crítica dos processos criativos nas mídias digitais. Os estudos sobre as linguagens digitais na linguística têm contribuído significativamente para a recepção das manifestações artísticas e poéticas nas infovias.

Como foi recebido o seu primeiro livro?
Jorge Luiz Antonio: A edição de 2008, embora muito pequena, teve boa recepção. Ela foi bastante divulgada e esgotou-se rapidamente. Enquanto os exemplares iam sendo vendidos e doados, fui revisando o conteúdo, reestruturando os capítulos. Troquei o CD-ROM [que acompanhava a primeira edição do livro] pelo DVD, mudei o título. O livro melhorou, pois, graças ao apoio dos coeditores brasileiro e norte-americano, Poesia digital: teoria, história, antologias pôde ser vendido a um preço mais acessível [R$ 45] e, assim, a divulgação está sendo mais efetiva, no Brasil e no exterior.

Como fez a seleção dos autores para a antologia de poesia, publicada no DVD que acompanha a obra impressa?

Jorge Luiz Antonio: Há dois propósitos básicos na antologia: dar conta das exemplificações comentadas no capítulo II do livro (“Poesia, arte, ciência e tecnologia”) e resgatar exemplos de poesia digital que não estão na rede por diversos motivos. Os critérios para a escolha dos poemas estão baseados, em um primeiro plano, nas relações da poesia com as artes, design e tecnologia digital. Além disso, a antologia também fornece um panorama histórico representativo. Também me pareceu válido apresentar uma amostragem internacional em várias línguas.

Seu livro vem acompanhado de um DVD com os poemas digitais. É comum os autores usarem essa forma de publicação? Ou eles têm preferido outros meios, como a internet, o e-book?
Jorge Luiz Antonio: Tornou-se uma necessidade o livro impresso vir acompanhado de um CD-ROM, DVD, ou pen drive, pois o mundo digital faz parte do mundo real e as relações hipermidiáticas são agora necessárias. Esses arquivos digitais individualizados oferecem uma continuação do assunto, pois há casos em que ele precisa ser exemplificado com produtos hipermidiáticos. Houve livros com disquetes e ainda há livros impressos que indicam um sítio eletrônico no qual as atualizações sucessivas estarão disponíveis. Há também os livros digitais disponibilizados na rede como páginas digitais ou como e-books, que são tão importantes como os DVD, CD-ROM, pen drive, etc.

Como é o acesso à poesia digital hoje?

Jorge Luiz Antonio: É maior do que nos primeiros tempos do computador isolado, de 1959 até 1995. Antes tínhamos o próprio computador, de acesso a poucos leitores; depois o disquete, o CD-ROM, o DVD, o pen drive, etc., que permitiram reproduções e puderam ser lidos por um maior número de pessoas. O surgimento da rede ofereceu conteúdos a pessoas das mais diferentes localidades e nos mais diferentes momentos. Já as tecnologias móveis ampliaram as possibilidades de leitura em tempo real, ou seja, praticamente logo depois que o poeta publica suas criações na rede, ela se torna uma leitura disponível, na maioria das vezes, em qualquer lugar.

Na sua opinião, a poesia digital conquistará mais espaço no mercado editorial no futuro?
Jorge Luiz Antonio: Acredito que isso irá ocorrer em breve. Os audiobooks, e-books e similares já são exemplos de que esse mercado editorial começa a crescer. A compra de cópias digitais e das editoras sob encomenda, cujo exemplo significativo é a <www.lulu.com>, pode baratear o preço do livro e promover o gosto pela leitura.


* Alunos de Estudos Literários e Ciências Biológicas da Unicamp