sexta-feira, 29 de abril de 2011

O Insulto da loucura

Fábio Waki*


            O próprio meio de publicação do conto “A Nova Califórnia” já dá indícios da matéria que Lima Barreto analisará ao longo da narrativa: inserida em sua obra O Triste Fim de Policarpo Quaresma, publicada em livro pela primeira vez em 1915, a sátira não poupa os excessos do ridículo para criticar a loucura recôndita no comportamento social. Enquanto o velho Policarpo desencadeia seus próprios desvarios com uma obsessão pelo estabelecimento do Tupi-Guarani como língua nacional, os desatinos dos habitantes de Tubiacanga, cenário do conto, eclodem como efeito de uma estapafúrdia sede por riqueza.
            Quando um certo químico chamado Raimundo Flamel chega à pacata cidadezinha, os moradores, antes taciturnos, passam a se dedicar às esquisitices do estrangeiro. Bisbilhotices, crendices e fofocas, bem à maneira de cidade pequena, são o que movem a opinião geral de Tubiacanga. De início, há quem o ache um falsário ou mesmo um acólito do demônio. Porém, quando o respeitadíssimo boticário local participa da opinião de que todos estão, na verdade, em companhia de um ilustre químico, a pessoa de Flamel logo se torna busto de respeito aos moradores. Eles o acolhem, fazem questão de cumprimentá-lo, ao “Doutor Flamel”, apresentam-no suas crianças para que essas estejam diante de um grande homem. Mas, afinal, de que homem?
            O humor e a crítica social de Lima Barreto, certamente, não se restringem à margem rasa do conto. Ao longo de toda a narrativa, mais e mais o leitor se deixa intrigar pela vida reclusa e misteriosa do estrangeiro. De fato, ele é um químico consagrado... mas o que faz naquela cidadezinha esquecida por Deus e o mundo? O que ele busca? Por que passa tanto tempo ensimesmado observando as águas do riacho, sozinho? Por que se apieda tanto das crianças? O que tanto vê quando as observa? Que segredos guarda entre as paredes de sua casa? Descontente em atordoar o leitor apenas com tais peculiaridades, o autor só agrava sua curiosidade quando, no último terço da história, revela que uma onda de violações de túmulos começa a horrorizar os antigos moradores. Logo se assume um vínculo entre o forasteiro, os habitantes de Tubiacanga e a seqüência de crimes. Mas qual? Que riqueza é essa que tanto impele os criminosos ensandecidos ao absurdo?
            Em um flerte com o fantástico, Lima Barreto encontra uma maneira cruel de atravessar a tênue linha que separa a sanidade da loucura, e não esconde seu desprezo pela hipócrita e gananciosa índole humana, ainda mais corrompida quando submersa na coletividade social. A cada parágrafo o foco narrativo transgride do que de início se restringe às impressões pessoais dos personagens para, pouco a pouco, embarcar na mentalidade parva da cidadezinha. Com isso, o que o autor nos apresenta é algo próximo ao romance experimental, de Émile Zola: dada uma amostra de indivíduos sujeitos a uma pressão social (os habitantes taciturnos e enxeridos de Tubiacanga), adiciona-se entre eles um elemento estranho a fim de se estudar seus efeitos sobre o estado primordial (Raimundo Flamel e a curiosidade desses habitantes).
            Assim como em Zola, os resultados previstos por Lima Barreto não são decerto otimistas. O que os diferencia é a vileza do primeiro, contra o sardonismo do segundo. E eis aqui a maior qualidade do texto do autor carioca: o riso que obtém de seus leitores ao expor as depravações humanas prova aos criticados o juízo que a ciência tem de seus comportamentos ridículos. E de fato não há quem não se identifique, mais cedo ou mais tarde, com algum dos desvairados.

*Aluno de Estudos Literários do IEL / Unicamp