segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O novo Casmurro

* Fábio Waki

     Publicado pela primeira vez no ano 2000, Dois Irmãos continua a visita que o manauara Milton Hatoum faz a sua cidade natal e à cultura imigrante que aí fervilha, passeio iniciado com o romance de estreia Relato de Um Certo Oriente (1989). Descendente de libaneses, o autor erige em sua obra uma ambiência excepcional na estética literária brasileira, onde se fecundam, reciprocamente, as culturas árabe e indígena. O admirável desta conjugação são os microcosmos lexicais e culturais que salpicam o texto e sua trama, permitindo-lhes uma leitura de agradável novidade. De fato, é impossível lê-lo sem se deixar embalar pelas ondas caudalosas do Amazonas, pelos sabores exóticos da fauna e flora tropicais e pela verborragia cativante daquela população que é certamente uma das mais miscigenadas do Brasil. E é neste mergulho ao epicentro do improvável que o leitor encontrará uma nova versão para a fábula dos irmãos inimigos, relíquia bíblica, aqui reestruturada no romance de formação sobre uma família de imigrantes libaneses no início do século XX. Da parte do autor, prova ainda maior de maestria rara.
   Encenado no estreito da miséria amazonense, o texto se aproxima em muito da estética pós-colonialista de Marguerite Duras e de V.S. Naipaul. Como nestes escritores, o autor se posiciona como o elemento transeunte em uma natureza selvagem, desbravador de uma multicultura heteromorfa e ubíqua, que a todo o momento o incita a desvelá-la, qual um Odisseu de hábitos lodacentos; mas ele é também uma testemunha da implacável força imperialista que sobrepuja, à distância, este frágil universo. Claro, não estamos aqui diante da Europa e de suas colônias asiáticas, mas da contraparte brasileira, que na criação de Hatoum se desenvolve na virulência urbano-industrial sulista que parasita a subdesenvolvida capital do Amazonas (sinédoque do Norte como um todo). Contudo, não pense o leitor que o romance se acorrenta à sociologia histórica de uma Manaus do pós-guerra ou do pré-regime militar: também encontramos nas entrelinhas uma erudição típica de ficcionista, que nos confirma o gênio literato de sua pluma. Facundo, o autor faz questão de compartilhar conosco suas leituras dos textos sagrados (católicos e muçulmanos), da mitologia clássica, do nouveau roman, de García Márquez ou mesmo, e mais do que os outros, do bom e velho Machado de Assis.
    Com uma escrita humilde, Hatoum descortina o palco de suas memórias para que assistamos, no plano superior de sua criatividade, às fortunas e infortúnios desta família cuja sina está nos dislates de seu próprio sangue. E aqui, é impossível não se remeter às literaturas acima descritas: êmulos como Esaú e Jacó, Caim e Abel ou Pedro e Paulo, os gêmeos Yaqub e Omar são a doença crônica que lentamente arrasta a família para a morte, anunciada já na abertura do livro.
         “Meus filhos já fizeram as pazes?”, pergunta a mãe no último sopro de vida. Contudo, ninguém lhe responde.
      Por que história o leitor deve esperar após tal preâmbulo?


Microestética 
O ponto de maior destaque de Dois Irmãos é o narrador

    O sujeito que nos escreve, a primeira pessoa, não é Milton Hatoum, mas um homem que testemunhou a crise da família de um ponto de vista privilegiado e cuja existência é mesmo um sintoma de tal ruína. O que lemos é a prosificação de sua memória, espólios do passado desgraçado o qual anseia por partilhar com quem o leia. Assim, temos diante de nós um narrador onipresente, alguém que sabe e soube escolher os momentos mais relevantes de seus testemunhos para nos fisgar com sua história, um orador que conhece de antemão o início, meio e fim dos imbróglios familiares os quais, da nossa parte, ainda somos obrigados a deslindar. Mas, em nenhum momento podemos dizer que se trata de um narrador onisciente; ao contrário: o que o impele a rememorar seus dias idos é justamente a tentativa de encontrar um sentido ou, pelo menos, um esclarecimento para sua vida miserável.
    Agora, se considerarmos este urgente mergulho ao ego um elemento de estética literária, o que temos em mãos é uma reapropriação do narrador de Dom Casmurro, ou mesmo do de Memórias póstumas de Brás Cubas. E a verve machadiana do autor manauara é louvável: não bastasse a hábil revisita a Esaú e Jacó, Hatoum nos agracia também com uma versão de seu próprio Bentinho. Como esse, o narrador de Dois Irmãos é um homem de personalidade humana – imperfeita, portanto – que compartilha conosco, segundo sua óptica, as aflições de seu pretérito e o reflexo dessas em seu corrente. 
     Esse narrador não é neurótico como os de Machado de Assis, mas não pensemos que seja imparcial. Seus relatos são, sim, psicopatológicos e tendenciosos – ele escolhe os episódios de sua biografia. Com efeito, logo de início somos guiados a conceber Omar como o vilão da história, a personalidade enervante que impede o bom andamento do livro e a felicidade da família; bem como somos guiados a nos simpatizar por Yaqub, o intelectual elegante, herói de exílio e amigo solícito. Não que tais veredictos estejam derradeiramente errados... mas, enfim, por que tanto ódio do narrador pelo Caçula? Em poucas páginas, o leitor perceberá que a origem desse ódio é a origem do drama, e aqui entendemos o porquê do autor desejar a estética de um romance de formação para os relatos do narrador: de que melhor maneira esse poderia nos convencer da vilania de Omar (e da bonomia de Yaqub), senão descrevendo-nos minuciosamente as desgraças e vexações pelas quais a família foi obrigada a passar em razão de sua tempestuosidade? Ora, ao longo da história, acompanhamos a desilusão de Zana, o desgosto de Halim, a miséria de Domingas, a penúria de Rânia, a fuga de Yaqub e, enfim, o Dois Irmãos do narrador. Tudo, em absoluto, conseqüência da convicção monofisista que Omar tem de si.
    Ainda, no suprauniverso textual, o narrador nos obriga a culpar o Caçula pelas impressões de sujeira, luxúria e pobreza com que não raro rotulamos a Manaus do livro; assim como somos propendidos a nos cativar por Yaqub e pelo progresso paulistano que representa. Sufocados em tal memorabilia, é impossível não nos sentirmos prisioneiros de nossa própria casca, cativos do submundo e escórias da carne, como o narrador se sente e em cuja cabeça, afinal, estamos.
      Mas... e o que transcende o narrador?

Macroestética
A leitura é agradável, mas a jornada não é fácil

     Uma vez que se fundamenta na miséria, nem sempre o romance nos faz divagar pelos paraísos (físicos e humanos) de Manaus. Na verdade, a imagem bela da cidade é uma imagem distante, a qual só podemos contemplar, jamais tocar – quanto menos, desfrutar. Na maior parte do tempo, somos levados a percorrer uma construção de pedras e palafitas, alienada do restante do país por uma floresta onde a putrescência é cíclica, habitada por pescadores subsistentes e até traficantes profissionais: um circo onde uma vida profícua só é conquistada a penas duríssimas.
   E Hatoum não é piedoso, como não o é este universo. Possivelmente à exceção do narrador (e que esta dúvida fique bem clara), os destinos de todos os personagens estão fadados ao malogro, como se em seus próprios ethos estivesse a perpetuação do desastre familiar, iniciado, primariamente, com o casamento discordante de Zana e Halim: erótico idealista, Halim cede a contragosto à maternidade latente da esposa, sujeição da qual surgirão os gêmeos. Deste ínterim, mais uma vez podemos recorrer à literatura bíblica, já que assim como Caim e Abel, de uma relação adversa nascem Yaqub e Omar.
    E aqui vale uma discussão curiosa sobre a exegese dos nomes. Yaqub é o equivalente árabe para o hebraico Jacó, que significa algo como “aquele que puxa o pé”. Portanto, um nome dedicado a alguém que tenha pelo menos um irmão mais velho. Já Omar significa “o maior” ou, simplesmente, “o primogênito (o primeiro)”. Assim, um nome para alguém que tenha pelo menos um irmão mais novo. Na parábola bíblica, Caim, o pulha, é o primogênito... Certamente o autor não escolheu o nome de seus dois protagonistas principais de forma arbitrária, como não o fez com os demais personagens da trama: Galib (“vencedor”, em árabe), Halim (“humilde” ou “paciente”), Zana (“beleza”), Rânia (“contente” ou “resignada”) etc. Vincular o ethos de um personagem à etimologia de seu nome é uma prática literária que data desde a poesia épica mais antiga, prática conhecida pelo escritor, com certeza. Então, o que propõe Hatoum com esse paralelismo dos nomes? Aliás, nomes que também remontam à parábola de Esaú e Jacó: na Bíblia, Esaú é o favorito de Isaac, enquanto Rebeca privilegia o caçula, Jacó. Não é necessária uma leitura muito extensa do romance para que se perceba o favoritismo de Halim por Yaqub e de Zana por Omar. Inclusive, o excesso de mimos dessa será a maior potência para as atitudes ensandecidas do Caçula – um Complexo de Édipo elevado à enésima potência, que fará com que Omar jamais seja capaz de embarcar nos encargos da adultícia, quanto menos se desatar dos enlaces do útero materno (não raro, sentimos que tanto o narrador quanto o autor culpam Zana por grande parte das desditas da família; bem como elogiam e lamentam os esforços progressistas de Halim).
      O que é mais provável, a intenção do escritor com este paralelismo cruzado é fazer com que o leitor medite, ao longo e após a leitura de Dois Irmãos, a respeito das condições humanas dos gêmeos, afluentes dos meandros das alegorias mais antigas. E com certeza muita pedagogia poderá ser obtida do romance através de um estudo minucioso das morais das passagens bíblicas, além das obras tipicamente literárias. 
     Antes do ponto final, urge que se atente para uma última qualidade do romance, de ordem diegética. Seu português excelente verbaliza uma epopéia familiar que, acima de tudo, não poupa os excessos da lascívia. Com efeito, o leitor não tem outra escolha senão ceder às próprias lubricidades, o que o narrador lhe incita desde o início da tragédia com episódios maliciosamente criativos. E neste ponto, mais uma vez Hatoum se mostra um artista hábil: como Vladmir Nabokov em Lolita, discretamente interessa seu leitor com uma promiscuidade profana, aqui alicerçada no incesto, enquanto põe na boca de outrem (seu narrador) as opiniões e testemunhos sobre tais transgressões; e em paralelo, movimenta em um plano conjugado o verdadeiro drama – os irmãos inimigos. Claro que nem toda a sensualidade do livro se resume às relações intrafamiliares. O autor também explora o voyeurismo, as fantasias da infância e ainda retoma em dois momentos o estereótipo da mulher brasileira erotizada, isto é, a mulata rita-baiana voluptuosa, cujos frêmitos da carne ardem ao som frenético da música nacional (vale ressaltar que essa ardência, ainda que valorize a narração, é uma estética negativa, uma vez que é conseqüência da miséria e da pressão social às quais os protagonistas estão submetidos).
    A obra de Milton Hatoum tem muitos méritos, mas, sem dúvida, as múltiplas dualidades são o que lhe conferem notável prestígio: encontramos referências cruzadas de ordem bíblica e machadiana, aspectos opostos da natureza amazônica, do progresso e da política, sem contar – e certamente o mais interessante – as ambiguidades psicológicas que movem os protagonistas ao longo desta epopéia moderna. O heroísmo frio de Yaqub e o calor destrutivo de Omar. A maternidade galinácea de Zana e a paternidade progressista de Halim. Natureza e pobreza, ordem e progresso, amor e ódio e, até mesmo, catolicismo e paganismo. Narração e autoria.
    Ao longo de elipses e digressões da parte do narrador, o leitor ainda se verá tentado a descobrir os diversos enigmas que pontuam o destino de cada um dos personagens, inclusive o do próprio narrador. Motivações que só fazem melhorar o interesse e a fluidez do romance.

* Aluno de Estudos Literários do IEL / Unicamp

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