terça-feira, 26 de julho de 2011

Os ouvidos e olhos da burguesia em “O Homem que sabia Javanês”

Gianne Ribeiro Pereira*

A escrita simples e direta de Lima Barreto se contrapõe à linguagem floreada e supérflua de sua época, em que muitos autores escreviam para agradar aos ouvidos da burguesia. Essa mudança na escrita antecipava o movimento modernista, mostrando o caráter avançado do escritor. O mulato carioca, através dessa transformação de forma e conteúdo, atingiu seu objetivo: seus contos atraentes mantêm-se vivos até os dias de hoje, revelando a decadência moral da recém-proclamada República. Neles, narrativas de acontecimentos usuais, tratados de modo aparentemente ingênuo, trazem um tom de crônica, em que o autor usa e abusa da ironia e sátira para denunciar o governo brasileiro.

No conto “O Homem que sabia Javanês”, a narrativa se inicia em um cenário típico da burguesia da Belle Époque: dois amigos se encontram numa confeitaria para travar um longo diálogo sobre suas atuais ocupações e peripécias da vida. Castelo, o protagonista, é construído por Lima como um exemplo do malandro brasileiro. O personagem conquista empregos sem ter o conhecimento necessário e usa de sua esperteza em situações oportunas para se beneficiar. Ao fingir saber javanês, língua falada na ilha de Java, Castelo consegue o emprego anunciado para ensinar essa língua. Tomando nota de apenas algumas palavras em uma enciclopédia, ele faz toda a cidade acreditar em seu inusitado conhecimento. Com isso, é futuramente nomeado cônsul, escreve artigos sobre Java por todo o Brasil e ainda representa o país em um congresso europeu. O conhecido tema da dialética da malandragem, presente em Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida, também pode ser identificado em “O Homem que sabia Javanês”. De fato, tanto Castelo como Leonardo conseguem aproveitar situações propícias e com sua sagacidade e doçura conquistam a confiança das pessoas. O personagem de Lima é nomeado cônsul; o de Manuel Antonio de Almeida, sargento, provando que no Brasil a astúcia pode ser tão útil quanto a instrução.

Não se pode, porém, afirmar que a conquista de um bom emprego dependa somente da malandragem. Há também a colaboração do fator “QI”, o famoso “quem-indica”, outro alvo de denúncias de Lima. A falta de ética profissional de muitos brasileiros é representada no conto pela solicitação da entrada de Castelo na diplomacia por parte de seu aluno, um senhor conhecido e renomado. A crítica se estende aos dias atuais, reafirmando o caráter de “homem à frente de seu tempo” do autor. Pois, como se sabe, muitos brasileiros sofrem exclusão social na tentativa de alcançar um emprego: é difícil alguém desconhecido ser aprovado quando amigos e parentes do contratante concorrem à mesma vaga.

Em “O homem que sabia javanês”, o escritor parte do núcleo do poder para apontar sua injusta distribuição: quem o possui usa-o a seu favor; e muitos desprovidos dele tratam logo de travar uma amizade interesseira com alguém em posição privilegiada. Lima faz ainda uma crítica contundente à futilidade da burguesia. Afinal, Castelo se torna um homem “famoso” pelo simples fato de conhecer uma língua excêntrica. Ao admirá-lo, a burguesia se revela absolutamente ignorante, pois aprecia alguém sem nem mesmo perceber sua falta de conhecimento. Um mero discurso bonito basta para conquistá-los.

* Aluna de Estudos Literários do IEL/Unicamp

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