segunda-feira, 4 de julho de 2011

‘O papel da crítica é pensar a crise ou mesmo gerar crise’

* Marcela Del Bianco Luppi e Laura Jaskow Bellini

Professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, Alcir Pécora diagnostica uma crise existente hoje no campo literário: “É como se a literatura inteira tivesse perdido a graça, a capacidade, enfim, de intervenção em nós”. Ele não aposta, contudo, na busca por caminhos para superar esta situação. Sua disposição atual é mesmo bem diversa: “Teríamos de mergulhar na crise, sofrer até o fim a nossa falta de graça, a nossa banalidade sem fim aparente, para então, quem sabe, começar a entender”. Essa disposição, vale dizer, é repleta de ligações com sua própria concepção da crítica. Pensada em termos genéricos, esta teria como papel problematizar o campo simbólico. Crítico atuante na imprensa há décadas, Pécora passou recentemente a assinar uma coluna mensal na revista Cult, sobre a qual também comenta nesta entrevista, pontuada por opiniões marcantes.

Em abril, o senhor virou colunista da Revista Cult. Qual o perfil que pretende imprimir a sua coluna?

Alcir Pécora: Penso apenas em fazer o que já faço há anos na Folha de S. Paulo e em outros jornais e revistas: comentários de livros saídos recentemente. No caso da Cult, entretanto, não tenho obrigação nenhuma de escrever sobre livros novos, ou outros. Como eles dizem, não tenho pauta. Apenas costumam me mandar uma vez por mês um pacote de livros, e eu posso, ou não, escolher um ou mais de um deles para resenhar. Escolho sempre pelo faro do momento, isto é, pela minha disposição de ler naquela hora. Essa história do faro é muito importante para mim: passo os olhos numa montanha de livros e fico sentindo algum tempo qual a minha disposição para ler algum deles. Essa disposição muda muito: eu mesmo não saberia dizer de antemão o que me leva a escolher este ou aquele, a cada vez: quando há um livro extraordinário, o chamado “clássico”, em geral o escolho; mas, por vezes, se vejo um livro com cara de tonto, desde que seja fino, há dias em que eu o escolho também. Mais raramente, como aconteceu exatamente neste mês, por mais que eu tente, não consigo achar nada que me agrade em meios aos livros enviados. Então eu mesmo vou à livraria e procuro um livro que me apeteça imediatamente sentar e ler, para depois escrever sobre ele. Há muitas possibilidades, e, como lhe disse, nunca tenho nada predeterminado, não me prendo a nenhum grupo de favoritos.

Em sua opinião, qual o papel e a importância do jornalismo cultural hoje?


Alcir Pécora: Não sei se hoje, ou desde sempre, quer dizer, em termos genéricos de “papel”, penso em jornalismo cultural como tendo ao menos uma dupla função articulada entre si. Uma, é a de informar sobre os eventos culturais da cidade e do mundo, por meio de reportagens precisas (de preferência com reportagens de primeira mão e de matérias traduzidas de fontes autorizadas), o que inclui também os vários serviços que facilitem o encontro das obras com o público. A outra função, implicada nessa primeira, é a de permitir que se forme um leitor que usufrua qualitativamente da cultura, um leitor exigente, o que se dá por meio da crítica desses eventos tendo em vista a sua composição como obra de arte e o conhecimento da sua relação com o legado cultural do país e do mundo. Para que isso seja possível, é interessante contar com críticos que disponham de um bom repertório de leitura de textos literários e teóricos e, também aqui, com críticos que não sejam exclusivamente locais.


E o papel da crítica literária?


Alcir Pécora: Quantos papéis! É preciso pensar de forma tão categórica? Em geral, acho que não: convém mais problematizar os papéis para ser capaz de ver além de uma naturalização de procedimentos contingentes. Mas não vou fugir da resposta, uma vez que se trata de uma conversa no âmbito de uma introdução didática ao assunto do jornalismo cultural. Em minha opinião, genericamente, o papel da crítica é pensar a crise ou mesmo gerar crise, isto é, descobrir formas fecundas de problematizar a produção cultural e seu campo simbólico.

Em seu artigo “Impasses da literatura contemporânea”, o senhor expressa uma opinião negativa a respeito da crítica contemporânea. Que caminhos a crítica poderia tomar para superar essa condição atual?

Alcir Pécora: De fato, não tenho nenhuma pista de superação dessa situação de impasse. Nem acho que quero ter uma. Ao contrário, acredito que devíamos adiar a ideia de superação em favor de uma disposição decidida para mergulhar até o fundo do poço. Talvez pareça uma inclinação masoquista. Porém, é tão mais importante pensar a crise quando há hoje uma resistência enorme para enfrentá-la, o que se pode reconhecer também como um desejo muito nítido de normalizar a falta de crítica. Mas isso é até a melhor face da desistência da crítica. A pior é a mixórdia da vida cultural brasileira. Dessa não há meio de escapar. Olhe para São Paulo, supostamente a cidade mais desenvolvida do país, e veja esse caso dos moradores de Higienópolis se recusando a receber o metrô por causa de gente “diferenciada”? Pode haver atitude mais preconceituosa e ignorante ao mesmo tempo? Se quiser olhar mais perto, veja Campinas, por exemplo: uma cidade grande para uma escala europeia e até norte-americana: o que você vê, em termos culturais, senão um deserto? Às vezes eu também penso que o fantasma do canavial derrubado para criar a Unicamp continua a nos assombrar. Não quer dizer também que devemos pregar o apocalipse. Pois, a pensar em apocalipse, suspeito que ele já tenha se dado, de modo quase imperceptível, ao longo dos últimos trinta anos. Parece que estamos experimentando uma sobrevida, num processo estranho, meio assombrado como disse, de elogio da evaporação, do supérfluo. Acho que devemos estar sendo atacados por uma virose que dissemina alguma euforia da irrelevância. Talvez seja um processo natural, depois de um processo de devastação que veio e doeu, mas não sabemos exatamente quando ou onde.

Qual a influência da crítica na literatura atual?

Alcir Pécora: A pergunta está posta em termos genéricos, e então, falando genericamente, acho que ela não tem qualquer influência relevante – pois se não há praticamente crítica! A que existe, como lhe disse antes, me parece mais ou menos a reboque da produção de mercado, uma forma de legitimação universitária daquilo que se explica mais como fenômeno econômico ou sociológico do que como ocorrência irredutivelmente cultural. Mas quem legitima a universidade que exista apenas dobrada ao mercado? A universidade séria, se certamente não pode ignorar o mercado, mantém a sua autonomia de invenção em relação a ele. Ela não existe para servi-lo apenas, mas para inventar alternativas a ele. Já a crítica não universitária, a dos jornais, sofre muito com o esvaziamento de seus quadros mais eruditos e mais ou menos terceirizou os seus serviços ou para gente da universidade ou para os serviços de release das editoras. O mais são blogues, que até onde sei (mas não sei muito) são apenas crítica amadora, incidental, e muitas vezes, besteirol grosso, o que não é problema, se o besteirol não alucinar em mitomania. De qualquer maneira, mesmo esse tipo de ação mais localizada e conformada da crítica pode ser informativa, elucidativa, didática, até formativa. Apenas não é crítica, no sentido forte: o de problematização da cultura. Há exceções naturalmente, mas exceções não geram influências generalizadas.

Há algum escritor contemporâneo que tenha "força literária", expressão empregada pelo senhor no artigo citado? Poderia dizer quais são esses escritores?

Alcir Pécora: Há vários escritores interessantes, mais fora do Brasil que no Brasil – aliás, essa euforia do Brasil emergente, em cultura, é apenas resíduo patrioteiro, de que, por desgraça, os intelectuais brasileiros não sabem abdicar, tão arraigado neles está o sentido provinciano de formação de um país. Mas também no Brasil há obras e autores de valor. Poderia citar vários deles, mas prefiro dizer, em geral, que a crise atual é menos de autores que de falta de imantação e energia do próprio campo literário, que já não consegue ter a mesma significação cultural de outros tempos. É como se a literatura inteira tivesse perdido a graça, a capacidade, enfim, de intervenção em nós, de nos obrigar a mudar, de pautar as nossas preocupações mais imediatas e mesmo de comover a inteligência. Você lê alguém legal, e diz: legal. Foi bom enquanto durou. Aí, fecha o livro e esquece. Mas o incrível é que isso geralmente só ocorre com a literatura contemporânea. Se você lê Homero ou a Bíblia, Platão ou Cícero, Dante ou Petrarca, Camões ou Vieira, Machado ou Pessoa, Dostoiévski ou Joyce... tudo fica eletrizado novamente. Os mortos estão mais vivos que os vivos, o que, em matéria literária, não é inusitado; mas agora parece que a literatura viva é exclusividade dos mortos. Esse é um modo de ver; mas há ainda um outro lado, talvez mais preocupante para a literatura contemporânea: também ensaístas e teóricos contemporâneos parecem bem mais comoventes e inventivos em seus textos do que os escritores, ainda presos em modelos de narrativa romanesca romântico-realista ou em poesia de tipo expressiva, mesmo que mal ou bem disfarçada em abstrações de poesia. Quer dizer, a literatura contemporânea parece perder tanto para a concorrência dos “clássicos”, como para a dos teóricos da cultura. Por quê? Eu teria algumas hipóteses a propor, como a da atual inflação simbólica e outras razões que mencionei naquele meu artigo de O Globo que você citou. Porém mais importante do que isso é o fato de que, em qualquer caso, teríamos de mergulhar na crise, sofrer até o fim a nossa falta de graça, a nossa banalidade sem fim aparente, para então, quem sabe, começar a entender, a levantar o fio da meada e tentar esticá-lo na direção de uma saída possível. Antes disso, responder é desviar.

* Alunas de Estudos Literários do IEL / Unicamp

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