“Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida de meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal de origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai.”
O trecho acima pertence ao livro Dois Irmãos, de Milton Hatoum. Sua estória (com “e” mesmo, como
Um forte diálogo com a base da cultura judaico-cristã é expresso em inúmeras referências bíblicas, evocando o inconsciente ocidental (e, por que não, o oriental, levando em conta países como o próprio Líbano). Mesmo quem nunca parou para ler a Bíblia, provavelmente tem internalizadas as histórias de Esaú e Jacó, Caim e Abel, ou o Cântico dos Cânticos. Estas são referências tão tradicionais que se podem considerar universais, principalmente porque retratam uma infinidade de experiências comuns ao ser humano, como o ciúme, a inveja e a paixão. Ainda no campo das alusões, não se pode esquecer o imaginário da contação de histórias. A configuração do relato faz referência tanto ao caboclo contador de causos, quanto às famosas histórias árabes consagradas pelas Mil e Uma Noites. Dos textos sagrados monoteístas aos mitos fundadores indígenas, encontra-se nos intertextos de Dois Irmãos uma espécie de elogio à memória. Sua narrativa não linear e as inúmeras camadas e pontos de vista prendem o leitor em uma espécie de labirinto em busca das origens, da verdade, do desvelamento, da alétheia (antônimo de esquecimento).
Quem nos conduz por essa casa de Asterion é Nael, narrador cujo nome só aparece uma vez e que vai surgindo timidamente ao longo do relato. Por sua condição de bastardo, transita entre o ser e o não ser. Assim, nas histórias que ouve e reconta, faz a ponte entre o dentro e o fora ou entre a naturalidade e a estranheza. Tal posição nos ajuda a desnaturalizar certas convenções sociais ou familiares que, como em Machado de Assis, são muitas vezes tão cruéis quanto a escravidão. Assim, por meio desse narrador, o maniqueísmo é evitado, mas as denúncias são feitas. Mostra-se um Brasil injusto e perversamente afetuoso, uma pequena amostra de como os valores familiares e sua estranha estrutura encobre, com tradições e afetos, realidades tão duras quanto a guerra ou a ditadura (como o semiescravismo, o incesto e a loucura) e, por isso, com maior emergência de serem expostas e discutidas em um país que se diz tolerante e pacífico. Em meio à truculência no Estado, à decadência da cidade, à morte e à desgraça das personagens, o que sobra é o relato, a memória e a possibilidade de reflexão. O que resta é o verbo.
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