terça-feira, 5 de julho de 2011

No fim era o verbo

*Renata Galvão Peres

“Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida de meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal de origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai.”


O trecho acima pertence ao livro Dois Irmãos, de Milton Hatoum. Sua estória (com “e” mesmo, como em Guimarães Rosa) se passa no seio de uma família de origem libanesa que habita em Manaus e se inicia por volta da Primeira Guerra Mundial, terminando no período em que a ditadura militar no Brasil começa a mostrar as garras. Apesar do cenário um tanto peculiar e com toques de cor local (imagens, sabores, sons etc.), o relato lucra ao não permitir uma redução ao exotismo. Para evitar essa queda numa visão distanciada, dois recursos parecem ter sido usados. O primeiro tem a ver com suas intertextualidades e a evocação de imaginários amplamente divulgados a ponto de poderem ser tidos como universais. Já o segundo, relaciona-se com seu narrador, membro da casa, e cuja proximidade não permite que encaremos o cenário ou as personagens com a estranheza de um estrangeiro.

Um forte diálogo com a base da cultura judaico-cristã é expresso em inúmeras referências bíblicas, evocando o inconsciente ocidental (e, por que não, o oriental, levando em conta países como o próprio Líbano). Mesmo quem nunca parou para ler a Bíblia, provavelmente tem internalizadas as histórias de Esaú e Jacó, Caim e Abel, ou o Cântico dos Cânticos. Estas são referências tão tradicionais que se podem considerar universais, principalmente porque retratam uma infinidade de experiências comuns ao ser humano, como o ciúme, a inveja e a paixão. Ainda no campo das alusões, não se pode esquecer o imaginário da contação de histórias. A configuração do relato faz referência tanto ao caboclo contador de causos, quanto às famosas histórias árabes consagradas pelas Mil e Uma Noites. Dos textos sagrados monoteístas aos mitos fundadores indígenas, encontra-se nos intertextos de Dois Irmãos uma espécie de elogio à memória. Sua narrativa não linear e as inúmeras camadas e pontos de vista prendem o leitor em uma espécie de labirinto em busca das origens, da verdade, do desvelamento, da alétheia (antônimo de esquecimento).

Quem nos conduz por essa casa de Asterion é Nael, narrador cujo nome só aparece uma vez e que vai surgindo timidamente ao longo do relato. Por sua condição de bastardo, transita entre o ser e o não ser. Assim, nas histórias que ouve e reconta, faz a ponte entre o dentro e o fora ou entre a naturalidade e a estranheza. Tal posição nos ajuda a desnaturalizar certas convenções sociais ou familiares que, como em Machado de Assis, são muitas vezes tão cruéis quanto a escravidão. Assim, por meio desse narrador, o maniqueísmo é evitado, mas as denúncias são feitas. Mostra-se um Brasil injusto e perversamente afetuoso, uma pequena amostra de como os valores familiares e sua estranha estrutura encobre, com tradições e afetos, realidades tão duras quanto a guerra ou a ditadura (como o semiescravismo, o incesto e a loucura) e, por isso, com maior emergência de serem expostas e discutidas em um país que se diz tolerante e pacífico. Em meio à truculência no Estado, à decadência da cidade, à morte e à desgraça das personagens, o que sobra é o relato, a memória e a possibilidade de reflexão. O que resta é o verbo.

* Aluna de Estudos Literários do IEL / Unicamp

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