segunda-feira, 9 de maio de 2011

Vinte e seis caracteres

Rayssa Ávila*


            Os últimos anos da década de 2000 foram inquestionavelmente marcados pela popularização de mídias sociais como o twitter. O que talvez não se saiba tão correntemente é que escrever de modo sucinto e direto, como em cento e quarenta caracteres, já vem sendo praticado há algum tempo. Exemplo disso é o microconto “Pedofilia”, de Marcelino Freire, publicado na antologia, organizada pelo mesmo autor, Os cem menores contos brasileiros do século (2004). Em 26 toques, temos uma história:
            “Ajoelhe, meu filho.
             E reze”.

            A economia exige ou é resultado de uma objetividade que nos deslinda toda uma possível narrativa – ou várias. O enfoque é dado ao mais impactante daquilo que se conta e só a ele se restringe.
            Em se tratando de pedofilia, o abalo é certo. Ainda mais quando em “meu filho” descobrimos existir entre os personagens uma relação parental, ou pelo menos carinhosa. Neste tratamento, percebe-se que, apesar da violência, a criança deve gostar do adulto. Alguma forma de resistência também deve haver, uma vez ter sido recomendado ao menor que reze. Mas a estranha ternura que emana do proferido sugere mais o aliciamento do “filho”, uma persuasão a que a criança não vê forma de negar, ainda que não goste de fazê-lo.
Uma das imagens mais chocantes que podem ser formadas a partir da leitura é a do pai coagindo o filho, pois nela está envolvido, além da violência sexual, o incesto. Há a possibilidade de o personagem que fala ser a mãe ou outra mulher qualquer, mas “Ajoelhe” cria a imagem do abuso homossexual contra o menino.
O imperativo, calmo, sem pontuação exclamativa, denota a superioridade com que se posiciona o enunciador, além da submissão sem saída do menino. O aspecto fatal das sentenças certamente corrobora para o efeito do conto: uma cena revoltante que não é possível reverter. O leitor se sente um espectador impotente, o que torna a leitura marcante.
Contribuindo para essa sensação, os termos empregados “ajoelhe” e “reze”, associados ao universo da religião, contrastam com o narrado, que só se torna evidente pelo título do conto. Se fosse outro nome, pensaríamos, por exemplo, se tratar de uma avó que ensina o neto a dirigir-se a Deus, em um quadro bem menos indigesto. A inserção desta esfera religiosa também pode sugerir que o ato é cometido por um padre, já que tantas vezes vemos sacerdotes envolvidos neste tipo de crime.
Percebe-se a força do recurso ao microconto. A riqueza do formato está justamente na pluralidade de situações a serem construídas a partir do material fértil fornecido pelo autor. Outro aspecto notável é que o leitor também se lança na atividade criadora, equiparando-se àquele que escreve e tornando mais próxima esta relação, geralmente vivida de forma intangível entre os implicados.
É então que se volta ao mundo digital: o twitter, largamente utilizado para publicação de microcontos, potencializa o envolvimento de quem lê. E também escreve, retwita e publica. Que o diga justamente o autor de “Pedofilia”, criador do microblog com mais de 4.500 seguidores (@MarcelinoFreire no twitter.com).
          
* Aluna de Estudos Literários do IEL / Unicamp

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